ABEL – O FILHO DESPREZADO
EDUARDO P. F. NETTO
Braz, estou grávida.
O que é isso mulher, você não para de ter filhos? Até parece “devota de São Bento, é um filho fora e outro dentro”.
Você também não me deixa dormir em paz. Vira pra lá,vira pra cá e vapt-vupt.
Porquê não toma pílulas para evitar?
Remédio custa dinheiro e você nunca me dá algum. Sempre que peço você reclama.
Han, han, você gosta mesmo é de engravidar, isso é que è; gosta mesmo é de se ver como tivesse com uma melancia na barriga.
É, mais dessa vez eu não queria mesmo.
Procure aquela D. Severina Parteira peça para ela um remédio para abortar.
Isso é pecado Braz.
Então deixa vir, será mais um par de braços forte para a lavoura.
Vou pensar.
Tá bem.
Elsa era uma cabocla forte, bonita, os cabelos e olhos negros, uma boca bem alinhada, cintura acentuada, mulher para homem nenhum botar defeito. O marido era também um caboclo forte, os cabelos crespos, a testa alta, os olhos castanhos, a pela morena curtida pelo sol do nordeste; mesmo antes de casar sentia uma forte atração por Elsa, com o casamento deu-se a explosão de seus desejos e já com mais de vinte anos de casados esse desejo não arrefecera.
Vinha entrando de porta a dentro à casa do Braz, quando ouvi o casal conversando. Parei e fiquei a escutar para não interrompê-los. Por fim ao entrar à sala:
Jurandir, meu amigo, preciso de seus conselhos.
O que houve desta vez, Elsa?
Engravidei mais uma vez e não quero esse filho. Já tomei vários remédios que a parteira fez para abortá-lo, mas agora não fez efeito.
Porquê você me pede conselhos se não vai segui-lo? Você sabe que sou contrário a esse tipo de coisa. Filho é dádiva de Deus, se você renega essa dádiva o que pode esperar dessa vida?
Elsa, emburrada tratou de mudar o rumo da conversa.
Três meses após essa conversa nasceu Abel com a cabeça e as pernas atrofiadas, o casal veio me procurar. com o bebê nos braços. Era uma figura muita feia. Fiquei penalizado.
Que é que faço com isso, você diz que filho é dádiva de Deus isso lá é dádiva de Deus?
Minha amiga, não esqueça que você fez o que pôde para abortá-lo, os remédios que tomou com certeza provocaram o que você chama de isso. Agora é tratar de carregar essa cruz e cuidar muito bem dela.
Você tá doido Jura, você acha mesmo que vou carregar esse fardo?
E o que você vai fazer?
Se não conseguir quem fique com ele, vou colocá-lo numa caixa e jogá-lo no rio; quem sabe alguém poderá encontrá-lo?
Minha amiga, isso é terrível. Você vai se enterrando cada vez mais na iniqüidade, não faça uma coisa dessa. Você plantou uma má semente, terá que colher seus frutos, é a lei de Deus.
Lei de Deus ou não preciso me desfazer deste fruto..
Não faça nada por enquanto, vou ver se consigo alguma alma caridosa que possa ficar com ele..
Meus amigos saíram um tanto decepcionados com o que lhes falei.
Lembrei-me que Elsa tinha uma irmã rica e solteira em São Paulo,
Amália, a irmã, trabalha ou trabalhava como voluntária em algumas entidades filantrópicas. Liguei para ela, ficou de vir até nós para conhecer o Abel.
Uma semana após ela surgiu de surpresa em minha casa.
Então Jura vamos lá ver nosso bebê?
Fomos à casa de nossos amigos, não os encontramos, àquela hora estavam
todos na lavoura. Entramos, jogado num canto, peladinho, coberto apenas um com trapo velho lá estava. Abel, magrinho, a cabeça descomunal, agitou os bracinhos e a cabeça ao nos ver. Amália, lágrimas a lhe escorrer pela face, apanhou-o compadecida, enrolou-o numa toalha, colocou-o num sofá e foi preparar um banho. Estava todo sujo de cocô. Deu-lhe o banho, procurou sem sucesso alguma roupa. Tirou dinheiro da bolsa e pediu-me para ir comprar fraldas, roupas, artigos de higiene e um carrinho de bebê.Ao voltar encontrei-a numa cadeira de balanço cantando uma cantiga de ninar com Abel no colo.
Dezoito horas, o sol cansado de sua milenar trajetória diária deitava-se além do horizonte. Espalhava sua cabeleira pintando com suas cores as nuvens passageiras. Pasmado, da varanda da casa olhava aquele espetáculo de rara beleza.
Meus amigos voltavam da lavoura, ao me verem apressaram os passos. Os filhos se espalharam pelos fundos da casa.
Ó, até que enfim você apareceu reclamou Elsa.
O que te traz aqui, Jura? Perguntou Braz.
Tenho uma surpresa para vocês, vamos entrar,
Na sala Amália ninava o bebê todo vestidinho e perfumado;num lado numa pequena mesa a mamadeira vazia no outro um carrinho de bebê com alguns bibelôs..
Surpreso o casal cumprimentou alegremente a visitante. Evitaram falar sobre o bebê.
Três dias após com os documentos legais de adoção Amália voltou com ele para São Paulo
Quinze anos se passaram. Abel, graças ao empenho e amor da tia superara um tanto suas deficiência, era um excelente aluno e exímio violinista. Cnco anos de prática com o instrumento sob a direção de famoso professor tornou-se um violinista de renome. Viajava constantemente dando consertos por todo o mundo. Estava rico. A mãe adotiva o acompanhava.
Dez anos se passaram, um dia Amália recebe uma carta desesperada.
Amália, estamos arruinados e doentes, os filhos todos não suportando as privações debandaram. Nem sei por onde andam. Por favor, nos ajude.
Filho leia esta carta.
Abel lê a carta.
De quem é?
Amália passa a lhe contar quem é Braz, o signatário da carta.
Ó mãe porquê não me contou isso antes?
Tive medo de suas reações, afinal eles lhe desprezaram impiedosamente; mas numa tal situação acho que devemos perdoa-los.
Vamos lá mãe, quero conhecer a abraçar minha verdadeira mãe e meu pai, mas não precisa ter qualquer tipo de receio a senhora será a mãe a quem sempre amarei.
No dia seguinte à chegada dos dois fomos à fazenda dos amigos. Era uma desolação. A casa antes tão bonita parecia abandonada. A lavoura e o rio secos. Uma desolação total. O encontro de Abel com seus pais foi comovente. Elsa abraçada com ele chorava e pedia perdão pelo desprezo que lhe votara. O pai também chorava arrependido.
Eu e Amália ao lado observávamos comovidos essa cena de arrependimento dos pais e de perdão do filho.
Trinta dias durou a permanência de Abel e sua mãe adotiva na cidade. A casa dos pais foi restaurada, um poço artesiano foi aberto e a água voltou a molhar aquela terra.
Impossibilitado para o trabalho pesado Braz agora apenas supervisionava os trabalhadores e Elsa limitava-se aos afazeres domésticos.
Abel enviava mensalmente uma pensão aos pais.
Naquele tempo eu era pregador e orientador de certa entidade religiosa, mas com a idade minhas atividades foram se tornando cada vez mais escassas até que por fim fui aposentado com uma remuneração insuficiente.
Numa das visitas que Abel, como de costume, fazia a seus pais visitou-me também e apercebeu-se que eu estava envelhecido, alquebrado e sem condições de trabalhar; mandou construir uma casa ao lado da casa da fazenda de seus pais e me instalou nela, onde também passei a fazer refeições.
Sempre nos reuníamos para jogar dominó, mas lá numa noite de lua cheia em que o casal estava desejando fazer outro tipo de jogo, sem algo para fazer sentei-me a escrever essas lembranças.